domingo, 4 de julio de 2010

03. Espiando pela janela

-Meu Amor, você vai ficar bem mesmo? - Dona Lis perguntou quando terminou de por sua jaqueta de cor bege e retocar o batom no espelho da entrada. Ela não aparentava ter trinta e cinco anos. Não quando sorria e usava uma das minhas calças jeans e uma camiseta semitransparente de alças rosa bebê - A mamãe não vai demorar pra voltar, mas qualquer coisa chama seu primo, ou o Caio, ou uma das suas amigas... fico preocupada em te deixar sozinha em casa!
-Mãe, eu já sou grandinha. E não é a primeira vez que a senhora sai de festa e me deixa aqui. Me liga ou envia uma mensagem se vai demorar.

-Oh, meu Bebê! - parece que nem quando eu cumprisse quarenta ela deixaria de me chamar assim, disfarecei um suspiro de exasperação com um meio sorriso - Não tinha que ser ao contrário? - ela perguntou acariciando meu rosto e enganchando a bolsa no ombro - Mas eu me preocupo por você... - sua expressão se tornou séria e em seu rosto fui capaz de ver refletida sua verdadeira por uma rara vez - Você já não anda com as meninas... - fiz uma careta e ela não me deixou protestar - Sim, eu entendo. Mas é que desde então tenho te visto mais retraída que antes. Meu amor, não quero te ver daquela maneira outra vez...

Ela se referia à um período que eu preferia esquecer. Que latejava em minha memória, e que havia sido muito mais duro do que eu deixava transparecer. Hoje lembro que nesse dia, vendo-a tentar uma e outra vez seguir apenas seu coração a achava realmente imadura pra ser uma adulta quando a via atuar por impulso já que eu acreditava que a solução certa seria definitivamente fugir da dor.

Que tonta! Agora sei que a dor pode ser um bom sinal. Afinal de contas sempre está emparejada com o um sentimento que tememos e que mais ansiamos. O amor.
Nunca pensei que a vida tivesse reservado para alguém tão pacata como eu algo como o que estava por vir. Nem que eu vivesse uma novela mexicana ruim!

-Não, mãe. Estarei muito bem. Tenho um plano completo pra essa noite. Um super banho, um bom filme na tv a cabo e acho que tem sorvete no congelador. Pode ir tranquila, dona namoradeira. Se comporta...

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa mais a buzina do carro do Estêvão soou na entrada, como se confirmasse o pedido.

-Toma cuidado! Não abra a porta pra ninguém e coloca o alarme.
-Sinceramente... parece que eu tenho cinco anos... - me queixei sozinha enquanto via minha mãe que parecia uma adolescente subindo no carro do seu namorado. Pelo menos já iam para quase sete meses juntos... dessa vez talvez durasse. O viúvo de cachos negros e jeito simples e sincero me caía muito bem.

Me alegrava tanto pensar que em pouco tempo me mudaria para perto do campus. Desfrutava estar sozinha, pra mim não queria dizer solidão. Queria dizer liberdade... e certa segurança.

Fui diretamente ao meu quarto, me desfiz daquela roupa que cheirava a suor e bolinhos de canela e abri a torneira deixando que a água quente enchesse a banheira e o vapor embaçasse o espelho. A essência de pêssego inundou o lugar.

Decidi que um pouco de indie me faria bem.
Como eu me movia a base de som e era uma criatura barulhenta por natureza, caminhei até o estéreo desabrochando a camisa do uniforme expondo minha roupa interior favorita e um pouco atrevida rosa chiclete. O fato de que eu fosse virgem e solteirona terminal não me limitava na hora de escolher lingerie, e eu gostava de me sentir femenina. Me dava um pouco de confiança.
Antes de me meter no banheiro caminhei até a janela e vi que ao outro lado tudo permanecia na penumbra. A luz do meu quarto atravessava a cortina lilás com pedras bordadas (pelos menos uma coisa que não me dava tão mal) e banhava a parede branca e o marco de madeira escura de uma das janelas da casa vizinha suavemente. Uma das duas dezenas de janelas. Suspirei.
Nossa casa era composta por uma sala - sala de jantar, um pequeno quintal, uma cozinha modesta e no andar de cima dois quartos que se uniam por um banheiro em comum. A casa ao lado deveria ter pelo menos uns quatro banheiros... levava fechada muito antes que nos mudássemos para esse bairro mas seu aspecto externo sempre foi impecável, teria que me reacostumar com ter vizinhos. Reacostumar-me com baixar as venezianas, diminuir o volume do som. Tinha que lembrar de não cantar a gritos nem imitar o som dos instrumentos com a voz. Augustana não precisava da desafinada Melissa Celinni como back vocal.

Espiei um pouco mais e vi que a única luz acesa era uma no andar de baixo, uma das janelas de esquina que dava vista à um precioso rosal vermelho. Outra olhada em direção ao caminho que unia o pátio traseiro ao dianteiro. Nada.
O único decifrável ali era que talvez a luz do meu quarto refletisse em alguma superfície no quarto que tinha diante. Com certeza em uma casa tão espaçosa, as pessoas optariam por ocupar a ala que dava vistas ao mar que à que dava ao meu muro. Aquele quarto provavelmente estaria vazio, já que a pequena mansão poderia possivelmente ter outros seis em sua extensão.

Envergolhada por minha bisbilhotice e um pouquinho decepcionada - sem querer admitir o motivo: Uma letra "G" que piscava em neón na minha mente - dei meia volta, joguei a camisa no cesto de roupa suja que cada vez estava maior e soltei o rabo de cavalo que tinha preso meu cabelo. Era quase cor caramelo me chegava até a cintura praticamente, me senti um pouco orgulhosa. A roupa íntima foi parar no cesto e eu dentro da banheira que espumava e cheirava maravilhosamente bem.




Joana se aproximou à mesa para retirar os pratos e servir a sobremesa.

-Desculpe seu... - ela segurou uma das mechas negras do cabelo atrás da orelha e as pintinhas marrons do seu rosto começaram a contrastar com um leve rubor ao me encarar.

Pobre garota, minha mãe fazia da sua vida um inferno. Não sei porque ela não dava o fora... suponho que mais pessoas do que eu imaginava não podem se dar ao luxo de simplesmente deixar as coisas pra trás quando são um fardo, elas simplesmente tem que suportá-las. Esperava que sendo amável com ela adoçaria um pouco mais a sua vida.
-Gabriel. Ligaram pra o senh... você. Uma Alícia, a outra era Carolina e depois uma Emília. Essa última ligou duas vezes.

-Oh. Tudo bem. Obrigado, Joan! - não pude evitar dar uma piscadinha pra ela, era irresistível ver como ela reagia. Ficava mais patosa que o normal.
Segui me divertindo e acrescentei em voz mais baixa quando ela estava retirando meu prato:
-Vê se acostuma em me tratar de igual pra igual. Por favor, Joana. - rocei seu cotovelo com delicadeza quando ela retirava os pratos, ela quase comete um desastre e provavelmente deveria me sentir culpado se minha mãe a demitisse por isso.
Denise fez caso omisso do meu pequeno arrebato e da ingenuidade da moça e foi direta ao ponto.
-São tantas que ela até falou em ordem alfabética, Gabe. - comentou dando um gole à sua taça de vinho quando Joana deixou a sala depois de servir a sobremesa.

-Ah, sim? Depois penso no que fazer a respeito. - quando estiver com paciência, acrescentei pra mim mesmo. Eu sabia ser direto também, afinal de contas tinha de quem puxar esse rasgo - Eu não sou o único que tem uma coleção, verdade?

-Não sei ao que você se refere. - que ótima atriz. Me tirava do sério tanta frialdade. Era impossível que ela estivesse sendo verdadeira. Decidi ir ao ponto também.

-Ele não veio outra vez. Onde meu pai está?

-No escritório. - ela hesitou um pouco antes de dar uma colherada no manjar. Um pouco mais calma acrescentou:

-Ele tem uma reunião amanhã cedo e terá que ficar até tarde trabalhando nela. Decidiu dormir num hotel lá perto, e assim não ficará tão cansado pela viagem. Falou que vai ficar acordado até bem tarde. Depois da reunião, vem pra casa.

-Ha! - cansado e acordado são duas coisas que com certeza ele ficaria - Sério?! E você engoliu isso?? - empurrei o prato de manjar branco, sentia vontade de vomitar. Estava tão cheio de interpretar essa obra!

-Gabriel, você me ofende.
-É ele quem te ofende! Meu Deus! Por que a senhora deixa isso acontecer? O que te prende à ele? Ele nunca está aqui!

-Você tem que apoiar seu pai.
-Eu apoio! Ser um adereço em cada reunião e jantar não é suficiente? Suportar essas patricinhas e oferecer diversão à elas não conta? Deixar minha guitarra pra estudar o mercado financeiro não conta? Deixar meus amigos aqui antes e os em Milão agora não significa nada? Não posso decidir nada sem esperar que ele me reprima!
-Você poderia se esforçar em ter uma perspectiva diferente e apenas disfrutar disso. Olhe ao seu redor, onde você está. É beneficioso para todos nós. - ela abarcou com um gesto a sala de jantar. Os quadros famosos, os móveis caros, a mesa repleta. Pela janela, através do jardim se via seu mercedes cor rubi estacionado e meu mustang ao lado. Como se aquilo me importasse.

-Não. Esse não é o ponto. Ser um objeto não o é.
-Você vai retornar essas chamadas, vai visitá-las, vai fazer o que for necessário. São filhas de sócios importantes. - antes que eu protestasse ela levantou a voz em um tom cortante, que acompanhava seu olhar desafiante - Desde quando é um problema pra você sair com alguma garota descebrada e bonita sem sentir nada por ela?

Bufei e desviei o rosto, decepcionado mais uma vez por como ela reagia. Ela voltou ao habitual melodramático:
-O que tem de errado em você, Gabriel? Quer me arruinar? Nos arruinar? Eu? Que faço tudo por você?!

Nunca senti meu pai como um verdadeiro pai. Ele nunca foi do tipo que se sentasse para conversar comigo em uma tarde e perguntar como iam as coisas comigo, tampouco me apoiava quando tomava minhas próprias decisões.

-Sou eu quem tomo as decisões, jovem! Você as acata!

Ele disse naquela noite em que vi minha primeira guitarra, uma Fender Jaguar, arder na chaminé do escritório quando disse que não pensava em cursar Administração. Minha mãe simplesmente colocou a mão sobre o ombro do Arthur e guardou silêncio. Me deixava doente.

Como se eu tivesse pedido para nascer! Como se eu tivesse a culpa por ela deixar a carreira de modelo! Como se eu apenas fosse um fardo, alguém que tinha que pagar uma dívida sem ter pedido um empréstimo!

Mas... afinal de contas... só de imaginar a infelicidade da minha mãe... de pensar na satisfação que o Arthur sentiria quando eu chutasse o balde... Ele iria se vangloriar! E finalmente... eu tinha um plano em ação.
Voltei ao meu papel, o qual eu interpretaria o tempo que fosse necessário para alcançar o meu próprio objetivo, não o dele.
-Eu não acho que isso é o que uma boa mãe diria - ela levantou a sombrancelha direita enquanto a empregada lhe servia mais vinho -, não que a senhora não seja uma. Às vezes só parece que a senhora tem menos escrúpulos que eu e é muito mais machista, ou liberal ao extremo se quer olhar desse lado...

Ela sorriu.
-E eu também gostaria de saber o que tem de errado comigo. Acho que é esse lugar. - Se não fosse por uma possível excessão, uma excessão de corpo escultural, cabelo cor caramelo e fragrância de pêssego. E de um olhar que me desconcertava. Seria todo um desafio e isso servia pra me animar.
Me levantei e caminhei até o lado da minha mãe, uma fugaz estrela que brilhou tão forte quanto rápido naquele pequeno mundo, que ao menos lhe serviu pra caçar um corrupto empresário num jantar da revista de moda da qual ela era a capa.
Dei um beijo na sua bochecha direita ao lhe desejar uma boa noite.

-Ah, sim! Seu pai também prometeu passar o fim de semana aqui.
-Ainda bem que vou passar o fim de semana fora.

-Vai? - asenti com um gesto em resposta, ela deu de ombros - Bom... Iremos à um balneário então. Dá no mesmo. Tenho que pensar em uma resposta rápida para descartar o convite de almoçar com os pais dessa garota ruiva que mora aqui perto. Fiquei de dar uma resposta. Não que não me importe fazer vida social, mas aquela mulher é insuportável! Usa tanta maquiagem que não dá pra ver suas linhas de expressão! E o pai, o ruivo? Calvin, eu acho. Olhava mais para o meu decote que para meu rosto quando vieram dar as boas vindas!
Segurei uma gargalhada. Pelo menos minha mãe tinha uma ótima memória e compartíamos algumas opiniões em comum.

-Boa noite, mãe.
-Boa noite, minha Vida. - que golpe baixo.
Plantilla original blogspot modificada por plantillas blog