jueves, 13 de mayo de 2010

02. Convites


O tom que ele usou me desconcertou, porque para mim não existia nada pior do que a sensação de ser observada, notada, estudada. Me tornava mais desastrada que o normal - e o meu normal era bem elevado -, me preocupava se tinha algo errado em minha cara - ou se tinha escolhido a roupa errada, estava com o nariz sujo ou algo entre os dentes (quem já usou ou usa esse aparelho horrível de metal nos dentes como eu sabe o quanto essa sensação de uma limpeza incompleta incomoda, e que comer em público é um desafio)- e se o olhar insistia eu ia ficando vermelha aos poucos até o ponto de buscar qualquer buraco onde me meter. Mas tinha que seguir servindo, sorrindo, cobrando e limpando.
Até que essa sensação mudou de emissor e se tornou cem vezes mais forte quando dei a volta e estampei meus olhos naquela imensidão verde. Ele ainda estava de costas para mim mas tinha girado um pouco o rosto e me encarava sobre seu ombro esquerdo. Era a primeira vez que aquilo passava comigo. Me sentia totalmente incapaz de desviar meu rosto do seu ainda que soubesse que já havia sido descoberta. A força era uma espécie de atração magnética ou gravitatória porque ainda que eu girasse por todo o recinto meus olhos voltariam à ele. Ele levantou a sombrancelha direita e sorrindo, fez um gesto pedindo que eu me aproximasse.
Talvez minha cabeça fosse explodir ou algo pior passasse já que a cada passo que eu dava em direção àquela mesa meu estômago gelava mais, só esperava que meu rosto não seguisse vermelho quando chegasse ali.
-Boa noite. Já decidiram o que vão pedir? - pelo menos minha voz sonou cordial e tranquila, o que me aliviou muito.
-Eu já tinha decidido mas você demorou tanto que além de mudar de idéia dez vezes acabei perdendo a fome, Melissa.
-Peço desculpas, Patrícia.- "Mas, já que esse é o caso, pelo menos dessa vez você não vai precisar sair correndo da mesa pra vomitar até os cereais que tomou pela manhã por medo a engordar duzentos gramos." - A outra garçonete vai chegar um pouco atrasada.
-Não se preocupa Mel. - essa era Cristina. Mas não se engane com ela, nunca te defenderia. A não ser que isso beneficiasse a ela mesma. Nesse caso, ser simpática comigo seria ganhar pontos com Caio que me vigiava desde a barra. - Dá pra ver que tá um pouco cheio mesmo - estendeu a mão e tocou meu cotovelo falando em voz um tom mais baixa - Pra não dizer "belamente cheio", eu vi o de agora pouco ali atrás. - e piscou discretamente me fazendo virar um tomate, "obrigado". - Quero outra coca light.
-Eu quero uma zero, com uma fatia de limão e três cubos de gelo. Pra acompanhar... não. Apenas a coca-cola. A cozinha da Dona Lis é uma armadilha mortal - disse Patrícia e logo comentou com o rapaz sentado ao seu lado - e esses waffles com chantilly e morangos uma isca malditamente perfeita.
-Obrigado pelo aviso. Realmente, tudo aqui parece extremamente tentador... - e levantou os olhos do pequeno cardápio plastificado até meu rosto, que depois dele completar a frase alcançou o nível máximo de vermelhidão nas bochechas - mas vou correr o risco. Para acompanhar um café colombiano, por favor, Melissa.
-Tudo bem. Agora mesmo trago o pedido de vocês.

Carla, a outra garçonete, chegou com quarenta e cinco minutos de atraso e Caio havia acabado de cortar a estúpida fatia de limão para a coca-cola da Patrícia quando escutei ela se desculpar pela terceira vez com minha mãe atrás da porta. Sua filha tinha apenas um ano e três meses e seu velho Renault vermelho a tinha abandonado sem bateria apenas duas quadras antes de chegar à casa da sua mãe e deixar a pequena Laura ali até que seu turno acabasse. Carla tinha o cabelo e olhos negros e seu rosto era cheio de pintas marrons, como uma banana, um rasgo que sua pequena tinha herdado. Apesar de ser apenas dois anos mais velha que eu já era mãe solteira, sua vida tinha sido muito mais dura que a minha e isso me fazia lembrar estar agradecida pelo sacrifício que as mães sempre fazem pelo nosso bem. Esperava ser forte o suficiente para um dia poder retribuir isso à minha.
-Tudo pronto.- respondeu Caio quando terminou de colocar o último morango no prato.
Nossa amizade também tinha sido alvo da Patrícia, mas ele me conhecia o suficiente pra dizer que ela estava enganada e que eu nunca diria que ele era um chato insistente que sempre estava batendo na minha porta. Caio respondeu que ele apenas era um tipo divertido e perseverante que não esperava ser convidado para entrar e que estava satisfeito com apenas ver que eu estava bem e sorria. E ainda faria o favor de esquecer que tinha tido aquela conversa com ela. Eu não gostava de escutar atrás das portas mas esse dia foi invitável e eu pedi desculpas pra ele mais tarde.
Voltei para servir a mesa e ao me retirar, de alguma maneira meu caderninho de anotar os pedidos caiu do bolso de atrás. Quando escutei o som dei meia volta e me abaixei para buscá-lo, outra mão acompanhou meu movimento e os dois tocamos juntos o pequeno bloc. Era ele.
-Aqui. - ele o estendeu em minha direção, apoiando um joelho no chão e com a outra perna dobrada com o braço esquerdo tocando o olho joelho. Não era apenas a postura ou o quanto ele era bonito, ele realmente parecia um príncipe a ponto de se declarar... E eu parecia uma tonta! Infantil! Aquela não era hora nem lugar pra pensar coisas assim.
-Qual é a graça? - perguntou quando eu mordia o lábio inferior, contendo um sorriso.
-Nenhuma. - segurei o caderno e ele estendeu uma mão pra me ajudar a levantar. Pelo menos "parecia" que eu ia me acostumando com a bagunça que sua cercania provocava no meu corpo e pensamentos. Apenas parecia.
-Por favor? - pediu enquanto nos levantávamos e como eu suspeitava, não poderia dizer não à uma petição sua. Não com aquela voz e não para aquele rosto.
-Apenas que eu sou uma boba com muita imaginação. Só isso.
-Ah. Bom saber que não sou o único. - ele sorriu e senti como uma onda batia em mim: desejei tocar seu rosto e comprovar se era real ou apenas um devaneio, acariciar seu cabelo e comprovar se era tão suave quanto parecia e poder me aproximar o suficiente e sentir mais uma vez a intensidade do seu perfume amadeirado... ele bateu a calça jens escuro que levava tirando o pó que a manchava na altura dos joelhos e voltou à mesa desde onde Patrícia nos observava em silêncio mas não por isso menos inquisitiva.
Eu ainda estava de pé ao lado da mesa, segurando a bandeja e admirando aquela mata de pelo castanho cobre e escutando a Patrícia e Cristina conversarem algo sobre música e instrumentos quando um abraço me envolveu por atrás.
-Imagine só: você, eu, as estrelas... as árvores, o som do vento entre as folhas, a luz da lua... os mosquitos, o barulho incessante dos grilos e o canto dos sapos... sem banheiro, sem ducha, sem eletricidade... Vou raptar você.
-Caio! - aquele abraço me fez sentir extremamente envergonhada, ainda que fosse seu jeito de ser normal. O afastei e simulei golpeár-lo com a bandeja na cabeça. - Não faz isso de novo!
-Te abraçar, te assustar ou te raptar? - ele não me deixou responder - Não importa. Vem comigo!
-Onde? - olhei sobre seus ombros e vi que Carla já estava cuidando de tudo por alí.
-O semestre acabou e a galera se juntou pra ir acampar. Alguns deles realmente gostam de plantas, especialmente uma espécie, com a qual eles fazem algo que tem vulgarmente o nome de um crustáceo. E depois queimam ele, fazendo muita fumaça. É um tipo de contradição, não acha? Mas esse não é o caso. E eu não gosto disso. Mas eu gosto de você e gostaria que você fosse comigo. E antes que você diga que não, se você diz que sim seu primo não vai poder se recusar - coisa que eu duvido, já que loiras não vão faltar por ali, e esse é o seu gênero em particular - e ter seu primo longe da sua caverna secreta todo um fim de semana é uma conquista. Ainda que por ali pelo bosque pode ter alguma caverna.
-Tá. Não entendi. Mas se você e o Pedro vão estar ali e é natureza, algo saudável eu acho depois de ouvir o que você disse, quero ir. Vai ter mais alguém que eu já conheça?
-Eu também! E você já me conhece! - se ofereceu Cristina que havia escutado toda a conversa - Seria algo assim como uma espécie de despedida, não? Segunda-feira a Patri e eu pegamos o avião para Paris e ficaremos por ali pelo menos quatro anos... Por favor?
-Claro que sim, Cris! O convite está estendido. Onde eu iria sem minha musa de ébano? Você está convidada. E você, Patrícia. E você... quem é você? - Perguntou Caio.
-Gabriel. Obrigado mas, a verdade é que eu acabo de chegar de mudança e ainda não me instalei direito e...
-Você também, Gabe! - Insistiu Patrícia - Fala sério. Tipo, você também tem jardineiro, cozinheiro, mordomo e pelo menos outras três empregadas como mínimo. Ainda que sua casa ocupe quase toda a quadra, fora o pequeno espaço da casa da Mel, não é que você necessariamente faça falta na hora de colocar os móveis ou por ordem na casa...
-Na minha casa também tem tudo isso! - respondeu Caio - Sou eu quem exerço quase todas essas funções! Mas deixa isso pra lá. Eu cuido de você também, cara. Minha salsicha na brasa é uma delícia.
-Certo. Mas não quero nenhuma salsicha.

Na mesa três deixaram um bilhete de vinte e um número de telefone anotado em um guardanapo. Agradeci a gorjeta e dissimulei não ter dado uma olhada e ter pensado três vezes anter de amassar o papel e jogar ele fora. Faltando coisa de quinze minutos para fechar, eles foram embora - Gabriel se despediu com um simples aceno enquanto abria a porta para que Patrícia saísse, algo que fingi não me deixar desilusionada -, Cristina veio dar um tchau quando eu colocava as últimas taças no lava-louças.
-Já vamos, Mel. Nos vemos sexta pela manhã... Vem aqui, me dá um abraço. - E Caio estava ao lado do seu Land Cruiser cinza conversando com Gabriel, se podia ver através da vitrine que minha mãe limpava desde dentro.
-Oh. Até, Cris.
Ela acompanhou minha vista com um movimento de cabeça e sorriu dissimuladamente antes de dizer:
-Ele perguntou por você, discretamente, mas perguntou. E sobre quem era o Caio. Eu não sou quem pra definir os limites da amizade de vocês e saí pela tangente mas a Patri disse que ele era "algo assim como um amigo mais que amigo sem deixar de ser amigo..." aos teus olhos, mas não aos dele. Então o Gabriel não disse mais nada e a Patrícia está contando os minutos até sexta pela noite. Vai ser esse fim de semana, Mel... - Se afastou e seguiu - Eu vou ficar com o Caio, porque é o que eu quero. Quando você souber o que quer, Mel, já podem ter levado isso do seu lado. Tem cuidado, fofa. Tchau!
Se havia algo que realmente divertia a Patrícia era se meter em qualquer classe de relação que eu tivesse apenas para arruinár-la. Quanto mais me significasse mais interesse ela sentiria por isso. Ainda não descobri o motivo por mais que tivesse usado isso algumas vezes pra me livrar de algum ou outro chato. Mas dessa vez não queria atrair sua atenção.

Naquela época não admitiria isso mas desde o primeiro dia me senti gravitatóriamente atraída por esse rapaz que eu apenas conhecia.

5 comentarios:

  1. Quando vem a próxima atualização?

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  2. oiê!!!!
    Com prometido no pupe, estou te seguindo!
    bjs

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  3. Todos os dias eu sempre venho aqi pra ver se vc já postou, Raqy! Eu sempre amei essa história e nem qe a proxima atualização venha ano qe vem qe eu paro de vir aqui!!

    A Fê, do azulão, lembra? :*

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  4. Claro que lembro de vocês!
    Haha! Muito obrigado, meninas!
    Escrevo mais para mim mesma, mas é muito confortante saber que tem gente que gosta de ler isso! Muito mesmo!
    Bjokas!

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